Quando saio do taxi em Mizumoto, uma zona residencial perto de Tokyo, tudo parece igual. Não há pontos de referência, e o sistema de endereços postais no Japão não facilita a vida a um ocidental que quer encontrar um local específico.
Nas traseiras de uma das casas, chamam-me a atenção umas cortinas com figuras de namahage, os demónios tradicionais do fim de ano na província de Akita. Não era disto que vinha à procura, mas pelo menos podia perguntar ali se conheciam a pessoa que procurava.
Nem foi preciso perguntar. Assim que afastei as cortinas percebi que era aquele o meu destino. Lá dentro, Hideta Kitazawa, um homem de meia idade trabalhava afincadamente numa peça de madeira. Um Komainu, uma espécie de cão-leão. Estas figuras são comuns à entrada dos templos no extremo oriente.
Por vezes, dependendo do templo podem ser substituídas por raposas (em templos dedicados à divindade Inari) ou outras imagens, mas independentemente da forma, todos têm duas características em comum. Andam sempre aos pares, e um tem a boca aberta e o outro tem a boca fechada. Um entoa a sílaba ‘A’, o outro a sílaba ‘Un’, respetivamente a primeira e última letras do alfabeto sânscrito. Juntas representam o início e o fim do Universo, e de todas as coisas, um pouco como o alfa e omega do alfabeto grego.
Kitazawa-san entalha o ‘A’. O ‘Un’ já está numa fase mais avançada. Primeiro as peças são entalhadas a partir de madeira de cipreste japonês (chamaecyparis obtusa). De seguida são cobertas com um preparado esbranquiçado feito à base de pó de conchas de ostra e colagénio recolhido de ossos de bovinos. Este processo é repetido mais de dez vezes até a peça ficar pronta para ser entregue, o que pode demorar um mês.
Para fazer uma pausa no seu trabalho, Kitazawa-san mostra-me outras peças que fez. Em particular a sua impressionante coleção de máscaras de Noh e Kyogen. Ambas são formas de teatro tradicionais, mas o Noh é mais solene, e o Kyogen mais descontraído. Estas diferenças tornam-se evidentes ao olhar para as diferentes versões das máscaras de uma mesma personagem.
Durante a pausa passamos para uma sala ao lado, coberta com tatami. A um canto está uma bancada onde um senhor de idade está sentado no chão. Entalha dois pratos de madeira com motivos de aves. Aos 79 anos, o pai de Kitazawa-san, que lhe ensinou a arte de entalhar madeira, ainda trabalha. Começou quando tinha 15 anos.
Só quando se levanta é que percebo que tem uma figura imponente, mais alto que a média dos japoneses. No entanto o seu sorriso contagiante deixa transparecer uma tremenda amabilidade, que imediatamente se confirma nos minutos seguintes quando nos sentamos para um café e dois dedos de conversa.
Faz principalmente peças relacionadas com a mitologia budista, dando vida a imagens de um livro com gravuras ukiyo-e. “Às vezes não é fácil porque tenho de imaginar a parte da personagem que não está representada no livro e criá-la em três dimensões”.
Já o sol se põe quando Kitazawa-san me deixa na estação para apanhar o comboio de volta para Tokyo. Alguns meses mais tarde, quando trocamos emails é com enorme felicidade que recebo a notícia que está muito atarefado no inverno. Trabalha em partes de fatos para gagaku. Foram comissionados para a cerimónia de sucessão do Imperador, a decorrer em 2019.
Não pode haver melhor forma de reconhecimento para os anos de dedicação à arte, e para a enorme simpatia de Hideta Kitazawa, e do seu pai. O Universo sabe tomar conta de quem merece…