Era já de noite quando cheguei ao santuário Sanku, perto da cidade de Hamada, no oeste do Japão. As pessoas que deixavam os seus sapatos à entrada de um pequeno edifício de madeira, sentavam-se no chão, em frente a um palco vazio, à medida que entravam. A convite da organização passei para trás do palco, onde vários homens e rapazes vestiam trajes elaborados, e colocavam as suas máscaras. Quando tudo estava pronto, retomei o meu lugar no chão em frente ao palco. Várias pessoas, vestidas com as tradicionais vestes brancas e azuis claras sentavam-se em frente a instrumentos musicais e começavam a tocar. A Kagura estava prestes a começar.
Há muito, muito tempo havia uma deusa chamada Amaterasu. Um dia, por causa de conflitos com outros deuses, escondeu-se numa caverna. Como era a deusa do sol, assim que se escondeu, o mundo ficou mergulhado em escuridão. Foi preciso outros deuses fazerem uma festa, e uma outra deusa, Ame-no-Uzume dançar à entrada da caverna para que a curiosa Amaterasu saísse da caverna para ver o que se passava. Assim, o mundo voltava a ficar iluminado.
Esta foi, provavelmente, a primeira Kagura, palavra que significa literalmente “entretenimento dos deuses”. Desde esse tempo longínquo que as descendentes da deusa Ame-no-Uzume continuam a efectuar essas danças. Essa descendência passou para as Miko, jovens sacerdotisas dos templos shintoístas do Japão, que ainda hoje executam danças sagradas em determinados dias do ano, em templos espalhados um pouco por todo o país.
Gradualmente essa tradição começou também a ser passada para outros praticantes. Aquilo que inicialmente era uma cerimónia religiosa ganhou um contexto popular. Em determinadas zonas do Japão formaram-se trupes com o objectivo de manter esta tradição de continuar a dançar para os Deuses. A essas trupes foram-se juntando pessoas de vários extratos sociais. Hamada, na região de Iwami da província de Shimane, tornou-se um destes locais.
Em Hamada a Kagura está no ADN das pessoas. Pequenas crianças imediatamente ficam alerta assim que ouvem o som da flauta ou dos tambores. Algumas até ensaiam uns passos de uma das danças. Está-lhes no sangue.
Aqui a Kagura transformou-se numa mistura de dança e teatro, em que os executantes representam lendas do Kojiki, uma compilação escrita de mitos japoneses associados à religião Shinto. Ebisu, o sorridente deus da boa sorte, passeia pela pela plateia atirando doces para o público. O guerreiro Susanoo empunha a sua espada para matar o monstro Yamata-no-Orochi e salvar a princesa captiva. Os espectáculos sucedem-se diariamente, em particular em épocas como o Outono, em que é preciso agradecer aos Deuses pelas boas colheitas.
Em alguns locais do Japão a Kagura ainda tem um significado reverencial e austero. No entanto em Hamada, há muito que se tornou numa forma de celebração do povo. De acordo com um dos habitantes, “se os deuses precisavam de entretenimento, isso provavelmente significa que também gostavam de rir e de se divertir”.